- 18 de novembro de 2024
Foto: Mustafa Omar/Unsplash
Estudo aponta que adolescentes, mulheres negras e usuárias do SUS com menor escolaridade enfrentam risco de sofrer violência obstétrica.
“Eu fui mãe na adolescência, aos 16 anos, e meu filho, Jonathan, faleceu meses após nascer. No parto, em um hospital público, eu sofri violência obstétrica, algo que afeta tantas mulheres negras”, relata Adriana Arcebispo, assistente social e escritora, que compartilha o cotidiano de sua família nas redes sociais.
A influenciadora, que é esposa de Josimar Silveira, e mãe de Akins, de 13 anos, e Dandara, de nove, compartilhou o caso de racismo obstétrico sofrido por ela durante o evento “Mães e crianças negras: sementes de comunidades vivas”, ocorrido em agosto de 2023.
“Fui humilhada, amarrada e tratada como se minha presença ali fosse um incômodo. O Jonathan também teve seus direitos violados ao não nascer em um ambiente acolhedor e protegido. Essa história é dele também e fala sobre as violências que nós, enquanto mães e crianças negras, vivemos desde o nascimento”, recorda a influenciadora, que tem mais de 120 mil seguidores no perfil Família Quilombo, no Instagram.
A violência vivida pela escritora é uma realidade para muitas outras mulheres negras no país. Dados preliminares do estudo “Nascer no Brasil 2“, realizado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) com base em informações de mais de 24 mil mulheres entre 2020 e 2023, em 465 maternidades do país, indicam que adolescentes, mulheres negras com mais de 35 anos, usuárias do Sistema Único de Saúde (SUS) e com menor escolaridade enfrentam maior risco de sofrer violência obstétrica.
Em entrevista à Alma Preta, Adriana deixa uma mensagem para todas as pessoas negras que gestam. “Somos vítimas de uma sociedade que nos violenta desde o nosso nascimento até o nascimento de quem parimos, mas na tentativa de roubar nossa vida e nossa esperança falharão miseravelmente! Nossos passos vêm de longe — a gente resiste, denuncia, grita, se aquilomba e marcha. Você não está só!.”
A Organização Mundial da Saúde (OMS) descreve a violência obstétrica como a imposição do controle sobre o corpo e os direitos reprodutivos da mulher pelos profissionais de saúde, por meio de práticas desrespeitosas e desumanas.
Segundo a OMS, esse tipo de violência pode envolver a administração excessiva de medicamentos, desconsiderando a autonomia da paciente e sua capacidade de fazer escolhas informadas.
O artigo “Relação entre iniquidade racial e violência obstétrica no parto”, publicado na Revista Científica da Escola Estadual de Saúde Pública de Goiás, investiga a relação entre a desigualdade racial e a violência obstétrica no atendimento ao parto.
Os autores afirmam que a etnia de pacientes afeta de maneira expressiva o tipo de atendimento oferecido nas maternidades. As mulheres negras estão mais sujeitas a intervenções como a manobra de Kristeller, amniotomia precoce e restrições alimentares durante o trabalho de parto, enquanto têm menos acesso a práticas humanizadas, como o contato pele a pele e métodos não farmacológicos para alívio da dor.
A manobra de Kristeller é considerada controversa e perigosa por várias organizações de saúde e profissionais da área obstétrica, incluindo a OMS, a Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO) e o Conselho Federal de Medicina (CFM).
Esses órgãos e especialistas alertam sobre os riscos associados à técnica, como a possibilidade de lesões ao feto, ao útero e à mãe, além do risco de causar complicações como ruptura uterina e hemorragias.
O estudo conclui que o racismo estrutural influencia a assistência obstétrica, destacando a urgência de políticas públicas que possam mitigar essas desigualdades e assegurar um atendimento de saúde mais justo e inclusivo.
A professora do curso de Obstetrícia da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP), Marlise de Oliveira Pimentel Lima, especializada em saúde da mulher e saúde materna com ênfase em assistência pré-natal, parto e puerpério, explica que não existe uma percepção uniforme entre os profissionais de saúde sobre o racismo estrutural e seu impacto no atendimento obstétrico.
“Alguns têm a ideia de que, embora possa existir um racismo estrutural, isto não impacta o atendimento obstétrico, pois sua conduta profissional é pautada pela ética e, portanto, isenta de preconceitos ao prestar o cuidado. Outros nem sequer reconhecem que há um racismo estrutural, preferindo acreditar que há um problema apenas de desigualdade econômica”, ressalta.
A pesquisadora também destaca que há profissionais que reconhecem o racismo estrutural, compreendem seu impacto na assistência obstétrica e buscam, por meio da conscientização e da disseminação de informações entre seus pares e gestores, transformar a realidade da atenção obstétrica. Mas, ao mesmo tempo, questiona a falta de ações e políticas de saúde para o combate ao racismo.
A pesquisadora da USP também destaca a escassez de dados sobre racismo obstétrico no Brasil, o que contribui para a invisibilidade do problema. “Pouco se pesquisa sobre racismo obstétrico no país, o que gera poucos dados sobre a dimensão real do problema”, observa Marlise.
Segundo ela, estudos mostram uma interseccionalidade importante entre raça, gênero e classe social que afeta diretamente a experiência das mulheres negras.
“Os dados de inquérito nacional sobre o nascer no Brasil que mostram que mulheres negras tiveram mais pré-natal inadequado que as brancas, maior chance de peregrinação em busca de um serviço de saúde na hora de receber um atendimento para o parto e mais episiotomias realizadas sem anestesia”, explica.
Para a influenciadora Adriana Arcebispo, o Sistema Único de Saúde (SUS) sozinho não é suficiente para transformar a realidade do racismo obstétrico.
Ela julga ser fundamental considerar o investimento em políticas públicas de educação que possam garantir o direito à educação sexual que abarque as relações de gênero e raça. E ainda defende que a formação adequada de profissionais de saúde, com conteúdos relacionados a questões sociais, a ética profissional e a política de cuidado, pode ser um dos aliados.
A escritora ressalta ainda a importância do investimento em centros de atenção à saúde sexual e reprodutiva, que possam garantir às pessoas gestantes e puérperas informações sobre os direitos relacionados ao gestar, parir e ao pós-parto.
Além de tornar obrigatória a notificação compulsória dos casos de violência obstétrica de forma específica, sendo fundamental para garantir a identificação e responsabilização legal dos agressores, assim como oferecer apoio irrestrito — legal, psicológico e social — às vítimas.
Para a pesquisadora, há uma ausência de ações e políticas de saúde claras para combater o racismo e a violência obstétrica enfrentados diariamente pelas mulheres negras em nosso país.
Marlise defende a necessidade de fortalecer e cobrar a implementação de boas práticas na assistência obstétrica, nos serviços de saúde, incorporando modelos de atenção centrados na mulher, que sejam respeitosos e adequados ao nível de risco apresentado durante seu ciclo gravídico-puerperal.
Este conteúdo faz parte de uma parceria com a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal.
Fonte: Alma Preta