- 19 de dezembro de 2024
Foto: Pedro Borges/Alma Preta
Localizado em frente ao Terminal Parque Dom Pedro, no centro de São Paulo, o supermercado Vovó Zuzu acumula um histórico de agressões e perseguições contra clientes negros cometidas por agentes de segurança.
O lugar é conhecido por atrair pessoas que moram em bairros populares e procuram por preços mais baixos que o habitual.
A Alma Preta encontrou quatro processos com pedido de indenização que tramitaram no Tribunal de Justiça de São Paulo em que clientes, principalmente pessoas negras, foram vítimas de violência e racismo dentro do estabelecimento.
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O Vovó Zuzu foi fundado em outubro de 2001, em São Paulo. Em maio de 2021, o estabelecimento passou a fazer parte da J&C Holding Participacoes S/A. A nova gestora do supermercado tem como sócios Afonso Rodrigues Junior (presidente) e Claudio Rodrigues (diretor).
O estabelecimento é um exemplo do que aponta o estudo do Laboratório de Estudos sobre Governança da Segurança (LEGS) para a Alma Preta. Os supermercados, dentre os espaços de comércio, estão entre os locais em que seguranças particulares mais cometem crimes.
Em geral, eles estão associados a abordagens de seguranças e a acusações de furto.
O histórico de processos contra o supermercado Vovó Zuzu começa em 2010, quando Marcos* estava no setor de carnes e foi repreendido por um açougueiro por apertar uma bandeja lacrada com plástico.
Em resposta, Marcos* justificou que estava apalpando o material para conferir se a carne não estava misturada com osso.
No mesmo local, um outro funcionário – também do açougue – brincou com o colega de trabalho afirmando que o mesmo havia perdido a oportunidade de ficar calado.
Constrangido com a brincadeira do colega, o açougueiro teria dito: “Também, olha com quem eu fui falar. Além de preto, é careca”.
No processo, a defesa do supermercado argumentou que o açougueiro falava sobre o colega de trabalho, que teria as mesmas características do cliente. O Vovó Zuzu também questionou o valor da causa, de R$ 20.400, dizendo que foi “claramente ‘arbitrado’ para sanar sua situação financeira”.
A Justiça reduziu o valor da causa para R$ 1.275,16, pago pelo supermercado em abril de 2011. O processo foi, então, extinto.
Em um dos casos mais recentes, em janeiro deste ano, Roberto*, de 66 anos, conta que foi até o supermercado procurar por alguns produtos quando quatro agentes de segurança o abordaram violentamente. Eles suspeitavam que o idoso teria roubado uma lata de cachaça.
Em depoimento, Roberto* conta que se dirigia até a saída do Vovó Zuzu quando um dos seguranças o parou de forma grosseira, empurrando-o contra a parede e o acusando de ter furtado a bebida.
A vítima diz que os funcionários foram truculentos durante toda a abordagem.
Por ser idoso e com medo de sofrer agressões físicas, Roberto chamou uma viatura da polícia. A autoridade, então, constatou que ele não tinha furtado o produto.
Diante do caso, Roberto moveu um processo contra o Vovó Zuzu com pedido de indenização por danos morais no valor de R$ 28.240.
O idoso diz que ficou surpreso com a abordagem já que era frequente as suas compras no estabelecimento.
“A gente toma um choque na hora, porque eu tenho problema de pressão alta. Tinha risco até de dar um ‘piripaque’. Foi um negócio perigoso, porque me pegaram de surpresa”, conta a vítima à reportagem.
Em defesa, o supermercado disse que há treinamento e orientação para que os funcionários responsáveis pela fiscalização sejam discretos durante as abordagens aos clientes.
Além disso, o estabelecimento nega que houve truculência. Segundo a defesa, o cliente foi quem fez “escândalo e escalou o problema, sendo que os outros três funcionários do estabelecimento foram verificar o que estava ocorrendo, diante do tumulto criado pelo próprio requerente”.
Na ação, a defesa também pediu que, em caso de condenação, o valor da indenização ficasse entre R$ 1 mil e R$ 3 mil.
A Justiça chegou a pedir imagens de câmeras de segurança ao Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE-SP), que fica próximo ao supermercado. No entanto, os vídeos não estavam mais disponíveis por conta do limite de tempo de armazenamento dos vídeos.
A Alma Preta solicitou um posicionamento ao TCE-SP sobre as imagens das câmeras, mas não obteve retorno até a publicação da reportagem. O espaço continua aberto à manifestação do órgão público.
“Eu me considero lesado nesse processo. Porque se tinha câmera no lugar que aconteceu, o que fizeram com a prova dessas câmeras que não apareceu nada?”, questiona Roberto.
Em setembro deste ano, o juiz Marcelo Castro Almeida Prado De Siqueira, do Foro Central Juizados Especiais, considerou a ação improcedente por falta de provas.
O caso transitou em julgado em outubro deste ano, ou seja, não é mais possível recorrer da decisão.
Para José*, uma simples rotina de fazer compras se tornou um trauma após um episódio de violência no supermercado Vovó Zuzu. Era dia 05 de junho de 2016, quando um segurança o barrou e agrediu suas costas e costelas com chutes e pontapés.
Após o episódio, um amigo o socorreu e o levou ao pronto-socorro. Segundo José*, ele foi medicado e ficou sem caminhar. Por conta dessa limitação, teria perdido o trabalho e ficado sem renda.
No processo de indenização por danos morais, a vítima pede um valor de R$ 30 mil.
Na época, a defesa do supermercado argumentou que a ação não era legítima por falta de provas. Afirmou também que José só comprou no estabelecimento em algumas ocasiões e que ele “foi visto nas redondezas do mercado aparentando embriaguez”.
Ainda conforme a defesa, durante o processo, José* não comprovou o vínculo empregatício, a demissão nem a solicitação médica de afastamento por 90 dias.
“[O autor] juntou a declaração de comparecimento à consulta médica em 17/06/2016 e a prescrição de medicamento por cinco dias, que nada comprovam as alegações contidas na inicial”, cita um trecho da defesa.
A sentença do processo só saiu em abril de 2017, quando o juiz Domício Whately Pacheco e Silva, da 1ª Vara do Juizado Especial Cível de Vergueiro, considerou a ação improcedente.
Segundo ele, os envolvidos apresentaram muitas diferentes versões do caso, e o autor não conseguiu comprovar as lesões corporais. A Justiça arquivou o caso.
No dia 29 de janeiro de 2014, um outro cliente, Paulo*, entrou no Vovó Zuzu para comprar um pó para suco e um miojo.
Ao observar a fila do supermercado, desistiu da compra. Deixou os produtos em uma prateleira e saiu do estabelecimento para não se atrasar para o trabalho.
Paulo* disse que já estava na rua quando quatro segurança o cercaram, a 1 quilômetro do mercado. Eles o acusavam de furtar os produtos que ele deixou no balcão.
No meio da Avenida Rangel Pestana, localizada na região do Brás, Paulo* informou que não tinha furtado nenhum produto e deixou que os agentes olhassem a sua mala.
Na ação, protocolada dois dias após os fatos, a vítima solicitou indenização por danos morais no valor de R$ 10.800.
Ele disse ainda que se sentiu humilhado já que era cliente da empresa e que foi dispensado pelos agentes após eles confirmarem que nenhum furto havia sido cometido.
Sete meses após a abertura do processo, em agosto de 2014, o mesmo juiz que julgou o processo de José*, Domício Whately, concordou novamente com a versão da defesa do supermercado e considerou a ação improcedente.
Segundo o entendimento do juiz, o caso ocorreu fora do estabelecimento, e a vítima não apresentou testemunhas nem provas da revista vexatória denunciada.
Em nenhum momento ao longo do processo, o juiz pediu imagens de segurança. Mesmo assim, arquivou o processo.
A reportagem pediu o posicionamento do supermercado em relação aos casos citados na matéria.
Em nota, o Vovó Zuzu respondeu que está cumprindo com as obrigações determinadas pela Justiça, como o pagamento de indenizações às vítimas.
Além disso, afirmou que “sempre tomou as medidas necessárias para garantir que os processos judiciais relacionados a tais episódio, já julgados ou em fase de julgamento, fossem devidamente resolvidos”.
A reportagem também perguntou sobre quais ações antirracistas são adotadas atualmente no estabelecimento.
A rede RP Santo, que representa o supermercado, disse que está reestruturando os núcleos administrativo e operacional de modo a “profissionalizar os colaboradores e seus processos”, mas não deu detalhes sobre as ações efetivas da empresa.
“Reiteramos nosso compromisso em promover um ambiente inclusivo e livre de discriminação em todas as suas operações, reconhecendo o impacto de episódios de violência e discriminação, e trabalhando continuamente para garantir que tais situações não se repitam”, cita um trecho da nota.
*Nome fictício criado para preservar a identidade da pessoa citada.
Fonte: Alma Preta