05 de setembro de 2025, 18:51:54

Por que o Brasil não concede visto humanitário a congoleses, que enfrentam uma guerra que dura 30 anos?

Embaixada brasileira em Kinshasa entrega aos congoleses apenas vistos de turismo e trabalho. Diplomata alega “falta de pressão da sociedade” para explicar ausência de política migratória para quem vem da RD Congo.


Por que o Brasil não concede visto humanitário a congoleses, que enfrentam uma guerra que dura 30 anos?

Família no campo de refugiados de Tanganyika, leste da República Democrática do Congo. — Pedro Borges/Alma Preta

Mais de 7 milhões de deslocados internos, ou seja, pessoas forçadas a sair de suas casas por conta da guerra, de enchentes e outros desastres naturais. Mais de 28 milhões de pessoas enfrentando fome severaUma criança estuprada a cada meia hora. A República Democrática do Congo (RDC) está em guerra na região leste do país desde 1998, com poucos intervalos de paz. Sua tragédia está documentada em relatórios de todas as agências das Nações Unidas e é reconhecida como uma das maiores crises humanitárias do mundo. Mesmo assim, o Itamaraty ainda não oferece visto humanitário a congoleses.

Nos países onde há concessão desse tipo de visto — no caso, Síria, Afeganistão e Haiti —, um cidadão local pode procurar as embaixadas brasileiras e solicitá-lo. Basta preencher um formulário eletrônico da Polícia Federal; apresentar um documento de identidade do país de origem, como certidão de nascimento ou casamento, e uma declaração de ausência de antecedentes criminais. Aqueles que pretendem permanecer no Brasil devem também comprovar renda.

Mas um congolês não consegue fazer isso na embaixada brasileira em Kinshasa, nem em outros países da região da África Central. O espaço diplomático os recebe apenas para a entrega de vistos de turismo e trabalho. E, durante as visitas que a reportagem fez ao prédio da embaixada na capital da RD Congo, sempre havia uma fila de congoleses para o pedido de visto.

Um deles disse à Alma Preta que sonha em ir ao Brasil. Godefroid Katanga Kilumbalumba, 33 anos, mora na cidade de Kalemie, na província de Tanganyika, no leste da República Democrática do Congo. Desempregado, ele vive na região próxima de onde ocorrem os ataques do grupo armado M23, apoiado por Ruanda.

A guerra, que disputa a exploração de minérios, é o contexto da necessidade dos congoleses de sair do país. “São os assassinatos, os massacres, a incerteza sobre o fim da guerra, a dificuldade para encontrar trabalho e o crescente aumento do preço dos alimentos”, compartilha Kilumbalumba.

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Para ele, o Brasil é um dos destinos desejados porque o país já teria superado problemas enfrentados pelos congoleses.

“O Brasil é um país desenvolvido, e a maioria dos problemas que a RDC enfrenta já foram resolvidos na vida de sua população. Além disso, sendo o Brasil um país que mantém boas relações com o nosso país. Especialmente por meio de sua hospitalidade, esperamos encontrar trabalho e viver em paz. Prosperar e viver felizes, mantendo nossa vida em completa segurança, sem as preocupações da guerra”, sonha o congolês.

Kilumbalumba compartilhou uma memória afetiva sobre o país, relacionada ao futebol. “O Brasil é um dos meus países de sonho desde criança. Eu dizia a mim mesmo que, quando a oportunidade surgisse, eu iria.Tenho muitas referências no mundo do futebol… O Brasil tem várias lendas e estrelas de várias gerações”, explicou.

O embaixador do Brasil em Kinshasa, Roberto Parente, acredita que a situação é complexa e que demanda o desenvolvimento de estudos com a comunidade congolesa. Ele, que está no cargo desde 2022, argumenta que “simplesmente o visto” não basta. Seria necessário pensar em políticas migratórias mais completas.

“O que nós podemos oferecer no Brasil? Porque não basta apenas botar uma pessoa num voo e dar um passe livre para ela. Nós já tivemos casos no Brasil de vistos humanitários em que as pessoas, depois de um tempo, foram embora para outros lugares”, pondera.

O que dizem as leis de migração e refúgio no Brasil

No Brasil, o que regula a entrada de imigrantes é a Lei de Imigração, de 2017. Nela, é prevista a concessão de “visto temporário para acolhida humanitária”. Essa modalidade de documento pode atender pessoas de qualquer país “em situação de grave ou iminente instabilidade institucional, de conflito armado, de calamidade de grande proporção, de desastre ambiental ou de grave violação de direitos humanos ou de direito internacional humanitário”.

As autoridades brasileiras têm definido alguns países que podem receber esse tipo de visto. Segundo o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), a definição desse tipo de política depende de avaliação interministerial — isso inclui o próprio MJSP, o Ministério das Relações Exteriores, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, entre outros. A decisão, segundo o ministério, é conduzida “à luz do contexto internacional e das capacidades nacionais de acolhimento”.

Outro meio de acolhimento seria o refúgio, regulado por uma lei mais antiga, o Estatuto do Refugiado, de 1997. Ele define que será reconhecido como refugiado todo indivíduo que esteja sendo perseguido por “motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas” ou que, “devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país”.

Uma terceira via são as portarias específicas. Existem algumas como que concede autorização de residência para as pessoas de países fronteiriços, como a Venezuela; outra para membros do Mercosul; e outra para países da CPLP, como Angola. Uma das mais recentes, de 2024, é a que concede autorização de residência com base em acolhida humanitária para pessoas da Ucrânia.

‘Falta pressão da sociedade brasileira’, diz diplomata

Era 24 de março, o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) em São Paulo recebeu o Fórum Nacional Vistos Humanitários no Brasil. Nele, um imigrante congolês perguntou a Irene Vida Gala, então subchefe do escritório de representação do Itamaraty em São Paulo, sobre o porquê de o Brasil não oferecer visto humanitário à nação africana.

“Nós sabemos dos milhões de mortos no Congo numa guerra que se prolonga há anos. Mas a maneira como o sistema internacional normalizou [a guerra na RD Congo] faz com que não haja comoção”, argumenta. “Essa guerra não ganhou as ‘headlines’ [manchetes, em inglês] no Brasil, nem no mundo.”

Irene Gala é uma diplomata reconhecida pela defesa das relações do Brasil com países africanos. Ela trabalhou em Angola entre 1993 e 1996, durante o período da guerra civil vivida pelo país entre 1975 e 2002. Em 23 de julho, ela se tornou embaixadora brasileira em Ruanda, no escritório da capital, Kigali.

Em entrevista para a Alma Preta, a diplomata afirma que o Ministério das Relações Exteriores responde às pressões da sociedade brasileira.

“A comoção social é uma imensa propulsora das ações de Estado. O que a gente tem a lamentar é que a situação do Congo, à despeito da sua gravidade, não produz uma comoção em prol da criação de visto humanitário para os potenciais refugiados”, lamenta Gala. 

Responsável pela provocação à diplomata, o refugiado congolês Daniel Diowo Otshudi, hoje naturalizado brasileiro, criticou a política imigratória brasileira.

“Não vou falar do racismo, porque o Haiti já está se beneficiando. Mas para mim é uma discriminação. Parece que a política migratória brasileira faz uma seleção”, completa. 

O Brasil não oferece visto humanitário para nenhum país africano atualmente.

Racismo denunciado em pesquisa

Embaixada brasileira em Kinshasa, capital da República Democrática do Congo. Foto: Pedro Borges/Alma Preta.

Os pedidos de refúgio e reunião familiar de congoleses no Brasil foram tema de pesquisa de doutorado de Patrícia Nabuco em 2019, na Universidade de São Paulo (USP).

Ela analisou as trocas de mensagens entre o Itamaraty e a embaixada brasileira em Kinshasa entre 2015 e 2018. Em 2018, o embaixador era André dos Santos, hoje na Síria. Antes, de 2015 a 2017, o cargo era ocupado Paulo Uchôa Ribeiro Filho, atual representante oficial do Brasil na Arábia Saudita.

Nas entrevistas feitas pela pesquisadora, os imigrantes classificaram o atendimento da Polícia Federal como “péssimo” e “racista”.

“Na PF, o atendimento lá é péssimo. É um atendimento seletivo, se eu posso falar isso. Racista também. Infelizmente são as palavras que têm que ser faladas”, reclamou uma imigrante.

A embaixada brasileira criticou os documentos apresentados por aqueles que buscam refúgio, com a afirmação de que “a falsificação de documentos é atividade regular no país”. 

“Documentos falsos são comumente produzidos até pelos órgãos oficiais que os emitem”. Para o embaixador, é necessário que o Brasil se atente para isso, para não receber um fluxo crescente de “falsos refugiados”. 

O embaixador invocou o “interesse nacional”, por “razões de segurança”, para pedir que o Brasil utilize “critérios mais rigorosos” para a “concessão de status de refugiado e de visto por reunião familiar”. 

Em um dos casos, o embaixador colocou sob suspeita as ameaças sofridas pelos congoleses, com um questionamento sobre a profissão de um refugiado.

“Considerando, no entanto, a atividade profissional do refugiado antes de imigrar para o Brasil (marceneiro), é pouco provável que o mesmo tenha sido objeto de ‘perseguição política’ pelas autoridades RD congolesas, mesmo que tenha efetivamente participado de protestos contra o governo”, afirmou o diplomata. 

A pesquisadora apontou que o embaixador mostrou desconhecimento da realidade de pessoas em situação de refúgio.

“O embaixador não tem conhecimento da realidade do refúgio, principalmente de casos de perseguição individualizada, como presentes no Congo. Nessas situações, para fugir, a pessoa às vezes tem que usar técnicas, incluindo a corrupção de autoridades. Assim, o fato de um refugiado ter saído do país pelo aeroporto não invalida sua narrativa de perseguição”. 

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Alma Preta pediu um posicionamento para o Itamaraty sobre a atuação dos dois embaixadores que atuaram em Kinshasa durante o período analisado pela pesquisa. O órgão afirmou, em nota, que:

“(…) a condução da política migratória e de refúgio no Brasil observa os princípios estabelecidos na Constituição Federal de 1988, na Lei de Migração, no Estatuto dos Refugiados e nos tratados internacionais dos quais o Brasil é parte. Entre esses princípios, estão o da dignidade da pessoa humana, a não discriminação, a não devolução [non-refoulement] e o acolhimento humanitário”.

Também afirmou que, “de acordo com o Regulamento Consular Brasileiro, os agentes consulares são orientados a zelar pela verificação da autenticidade da documentação apresentada”. Assim, “nos casos em que houver dúvida quanto à regularidade dos documentos, os postos podem solicitar documentos adicionais ao requerente ou realizar consulta à Secretaria de Estado”. 

Por fim, o Itamaraty afirma que “prevê-se que essa análise seja conduzida de forma individualizada, com base em critérios objetivos e não discriminatórios, em estrita observância à legislação brasileira e aos princípios que regem a Administração Pública”.

A rota para o Brasil via Angola

Com essa experiência negativa, não são muitos congoleses que conseguem chegar e permanecer no Brasil. Por isso, de 2010 a 2024, o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare) contabilizou apenas 2.569 solicitações de refúgio da República Democrática do Congo. E, desse total, 1.171 congoleses receberam o status de refugiado em 14 anos — o equivalente a 45,6% das solicitações. 

Para fins comparativos: mesmo no contexto de restrição migratória, um terço dos refugiados acolhidos pelos Estados Unidos em 2022 (9 mil de 29 mil) eram da RD Congo. 

Muitos dos congoleses que querem vir ao Brasil tentam um visto de turista. Assim que chegam ao território brasileiro, eles solicitam refúgio.

Outra via de acesso usada por congoleses é o passaporte angolano. A via de acesso por Angola é possível porque a nação africana faz parte da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e, desde 2023, uma portaria facilita o acesso ao visto para os cidadãos dessa comunidade

“Às vezes, os congoleses saem de lá, vão para Angola, pegam o passaporte angolano, conseguem o visto e vêm para cá. Por isso que, como eles entram com o documento angolano, oficialmente eles são angolanos. Mas, dentre esses angolanos, a maioria são congoleses”, explica Letícia Carvalho, coordenadora de Advocacy da Missão Paz, ONG que trabalha com a comunidade imigrante e refugiada em São Paulo.

Entre 2010 e 2024, 17.151 angolanos foram registrados no Brasil, quinze vezes mais que os 1.117 congoleses da RD Congo no mesmo período. Os dados são oficiais do Sistema de Registro Nacional Migratório (Sismigra)

Motivações políticas para o visto humanitário

A decisão de um país de conceder o visto humanitário para outra nação é mais política do que técnica, explica o sociólogo Alex Vargem, pesquisador das migrações africanas no Brasil, doutorando em Ciências Sociais na Unicamp.

“O refúgio também não é só uma questão técnica. Não é só o Brasil ser signatário da Convenção X, Y, Z, tem a sua lei. Refúgio também é uma questão política”, explica.

Um exemplo disso foi a decisão do então presidente da República, Michel Temer (MDB), de conceder visto humanitário para venezuelanos em fevereiro de 2017. A mensagem política embutida nessa política migratória é reconhecer a calamidade no país vizinho e, consequentemente, a crise do governo venezuelano.

“Nunca vai ser por benevolência, ou porque o Brasil é muito acolhedor e muito evoluído”, pondera Carvalho, advocacy da Missão Paz.

Mesmo com a existência de políticas direcionadas aos haitianos, Vargem acredita que o racismo também influencia as escolhas do Brasil sobre suas fronteiras.

“O tratamento que africanos têm no sistema migratório é totalmente diferente de outros grupos nacionais. Geralmente, os refugiados são vistos como sujeitos abstratos, sem cor. Mas são corpos negros, africanos, no contexto de um país marcado por séculos de escravidão. Isso impacta as ações de pessoas que não têm esse letramento racial e estão nos processos decisórios das políticas públicas”, analisa o sociólogo.

Deslocamento interno e para países vizinhos

Vista do campo de refugiados de Tanganyika, que fica próximo ao Kivu do Sul. Foto: Pedro Borges/Alma Preta.

A atual fase da guerra na RD Congo, que começa em março de 2022, o número de deslocados internos vem escalando e passa dos 7 milhões. Mais de 119.000 pessoas saíram do país desde janeiro de 2025, principalmente para os países vizinhos Uganda (68,2 mil pessoas) e Burundi (41,7 mil pessoas).

O fato de a maioria das pessoas não se afastar muito da RD Congo mesmo no contexto de guerra se deve à complexidade do deslocamento nessas regiões, explica William Laureano, associado de proteção no Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur).

“Os dados mostram que muito desse deslocamento não se dá de avião. Ele se dá muito a pé, de ônibus, de táxi, da forma como a pessoa consegue”, afirma o representante do Acnur.  “Porque o transporte aéreo tem umas peculiaridades, que é o fato de você precisar comprar uma passagem, ter um passaporte, ter o visto. E isso não é fácil quando nós estamos vendo um deslocamento em massa”. 

Em 27 de janeiro de 2025, o grupo rebelde M23, com apoio do exército de Ruanda, tomou a cidade de Goma, capital do Kivu do Norte. Poucos dias depois, em 15 de fevereiro, o mesmo grupo ocupou Bukavu, capital do Kivu do Sul. Apesar de um acordo de paz assinado em 27 de junho, a ocupação militar persiste. 

Por isso, o Acnur tem defendido a necessidade de proteção internacional, ou seja, de conceder o status de refugiado para pessoas que estão na República Democrática do Congo. “Em especial de três regiões específicas, que é a região do Kivu do Norte, Kivu do Sul e o Ituri,  que são as regiões na fronteira com Ruanda e Burundi”, explica Laureano.

O Exército brasileiro, braço armado de nosso Estado, também tem conhecimento sobre o que acontece no país. Desde 28 de janeiro, o general brasileiro Ulisses de Mesquita Gomes assumiu o comando da Monusco, a missão de paz da ONU que atua na República Democrática do Congo. Ele é o sexto militar brasileiro a ocupar essa posição. 

A ONU descreve a atual situação da Monusco como “insustentável”, por falta de estrutura e suprimentos.

Fonte: Alma Preta


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