- 18 de novembro de 2024
Foto: Manifestações neste 20 de novembro estão marcadas em todas as regiões do país - Jorge Leão
Pela primeira vez o Dia da Consciência Negra é feriado nacional, reivindicação do movimento desde os anos 1970
Neste dia 20 de novembro, primeiro ano em que o Dia da Consciência Negra é feriado nacional no Brasil, a luta contra o extermínio da população jovem e negra segue bandeira central das marchas organizadas em dezenas de cidades. Apesar do “caminho longo a percorrer”, Regina Santos, militante histórica do Movimento Negro Unificado (MNU), observa que se vive um avanço da “consciência racial da sociedade brasileira”.
A luta para que a data se tornasse um feriado em todo o país é encampada por entidades do movimento negro “desde o grupo Palmares em Porto Alegre, em 1971”, lembra Luciana Araújo, que atua na Marcha de Mulheres Negras de São Paulo desde a sua fundação em 2014.
“Não é uma conquista só de um dia para ficar afastado do trabalho num país que ainda guarda muito do seu DNA escravocrata. É um dia para marcar os crimes continuados do Estado brasileiro contra a nossa população”, destaca Araújo.
A sanção do Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra como feriado nacional foi feita pelo presidente Lula (PT) em dezembro de 2023. A inauguração da data nestes moldes em 2024, para Luciana, “é uma vitória dos movimentos negros em um contexto de uma realidade muito difícil no país e no mundo”.
Genocídio
A maior presença da temática racial no debate público e o aumento, na última década, da população negra nas universidades – segundo o IBGE, em 2022 eram 48,3% dos estudantes, 3% a mais que em 2016 – não está acompanhado da queda da seletividade racial da violência das forças de segurança do Estado.
O dia que homenageia Zumbi dos Palmares chega em 2024 no mês em que um estudo revelou que quase 90% das vítimas fatais da violência policial no país são negras.
Obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) de nove estados, o boletim “Pele alvo: mortes que revelam um padrão” da Rede de Observatórios da Segurança mostrou que das 4.025 mortes pela polícia em 2023, 3.169 eram pessoas negras. O número equivale a 87,8% do total.
Ao longo dos últimos cinco anos em que a Rede faz este levantamento, o estado da Bahia registrou um aumento de 161% nas mortes praticadas pela polícia. Em 2023, a Bahia, unidade da federação mais negra do Brasil, foi também aquela onde a polícia foi mais letal. Governada por Jerônimo Rodrigues (PT), o estado registrou 1.702 pessoas mortas pela polícia no ano passado.
No lançamento do relatório, a cientista social e coordenadora da pesquisa, Silvia Ramos, classificou os dados como “escandalosos”. “De 2019 a 2023, aconteceu o seguinte dentro da polícia baiana: em vez de coibir o uso da força letal, houve incentivo. Pode ter certeza, não é só porque os criminosos estão confrontando mais a polícia. É porque tem uma polícia cuja ação letal foi liberada”, avaliou Ramos em entrevista à Agência Brasil.
“A violência policial já era uma preocupação lá em 1978”, diz Regina, se referindo ao ano em que o MNU foi fundado, em plena ditadura militar, nas escadarias do Theatro Municipal de São Paulo.
“Mas estamos pautando com muita força hoje o genocídio, para que o Estado brasileiro pare de nos matar, de nos encarcerar”, destaca Regina. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, das cerca de 850 mil pessoas presas no país, 70% são negras.
Apenas seis dias tinham passado deste novembro, o mês da consciência negra, quando a morte do garoto Ryan Andrade Santos, de quatro anos, em uma ação policial na Baixada Santista tomou as manchetes. As operações da Polícia Militar paulista na região desde julho de 2023 fizeram escalar a morte de adolescentes em 60% sob a gestão de Tarcísio de Freitas (Republicanos).
Ex-policial da Rota e secretário de Segurança Pública de São Paulo, Guilherme Derrite declarou que os PMs que mataram a criança “atuaram para proteger a própria vida de agressão de criminosos”. Dois dias depois, o governador Tarcísio elogiou Derrite, dizendo que o secretário se tornou “referência para todo o Brasil”.
O cenário, pontua Luciana Araújo, é de um país governado em diversas instâncias por representantes da extrema direita que “têm como principal alvo o povo preto”.
“Não é à toa que a gente vive a retomada da tentativa destes setores de proibir o aborto, inclusive aquele previsto em lei, quando a gente sabe que pelo menos 40% das vítimas de estupro nesse país são meninas negras de 0 a 16 anos. É um projeto de extermínio que não parece ser voltado ao povo preto, e sim a todas as mulheres, mas que é voltada principalmente para nós”, argumenta Luciana.
“E o genocídio no Brasil, como já dizia Abdias Nascimento”, prossegue Araújo, “tem múltiplas faces”: “Tem a face mais direta que é a ação da polícia, mas tem a face da negativa de direitos, das políticas de ajuste fiscal, do desmonte do SUS, ou a privatização da educação, como o Tarcísio vem fazendo em São Paulo”.
Ao citar as recentes absolvições do policial que matou a menina Ágatha Félix no Rio de Janeiro e também das empresas Samarco, Vale e BHP pelo rompimento da barragem de Mariana (MG), Luciana Araújo ressalta que há um projeto de extermínio em curso.
Rechaçando a ideia de desvio de conduta de policiais ou de meros acidentes que fazem da população pobre e negra a maior vítima de tragédias relacionadas a eventos climáticos, Araújo reitera que este 20 de novembro “tem uma importância fundamental”.
Em suas palavras, “é um momento de denúncia do genocídio como centro, como sempre, porque é um projeto do Estado brasileiro. E a gente precisa debater isso nesses moldes. Porque o nosso governo não pode fazer isso”.
“Ainda que sob um governo federal progressista que reconheceu a luta do movimento negro e a necessidade do feriado, vivemos também neste cenário em que a busca por governabilidade acaba colocando na mesa de negociação os nossos direitos”, salienta a integrante da Marcha de Mulheres Negras.
Maior letramento racial
Ao mesmo tempo em que o país vê e permite a violência racista de Estado, existem, na avaliação de Regina Santos, “algumas vitórias que podem até nem ser palpáveis num primeiro momento”: “a questão racial está sendo pautada por toda a sociedade brasileira e isso é resultado da luta do movimento negro”.
“Há alguns anos, a invisibilidade da questão racial era um impedimento para o enfrentamento ao racismo”, observa Regina. Hoje, diz ela, há um “avanço na conscientização racial”.
“É só a gente ver a juventude nos saraus, nas batalhas de rima, se apropriando da nossa história tão violentamente escondida. Essa juventude que se reconhece negra, tem orgulho da sua história, dos seus cabelos, dos seus traços. A gente está vendo isso aflorar com muita força nas periferias”, aponta Santos.
Este “avanço bastante forte”, classifica Regina, está relacionado com outras conquistas. Entre elas, a ativista cita o aumento de pessoas do movimento negro em espaços institucionais de poder, a obrigatoriedade das cotas raciais nas universidades e a aprovação da Lei 10.639/2003, que institui o ensino da história e cultura-afrobrasileira em todas as escolas públicas e particulares do país – ainda que sua aplicação seja falha em 70% dos municípios brasileiros.
Fonte: Brasil de Fato